Passado? Princípio. Ponto de partida! Isso mesmo, o ponto de partida para essa conjugação estava em outros tempos, nos quais habitavam o sonho de menina, encantada com o mais recente presente que recebera de seu pai, uma Olivetti Lettera 82, se não me falha a memória – alguém em minha casa pode conferir, já que essa preciosidade certa vez resistiu bravamente ao fogo e hoje resiste ao tempo.
Como eu dizia, o ponto de partida foi ali, diante do verde daquela máquina de escrever e das folhas brancas, as quais aos poucos iam ficando povoadas com minhas vidas imaginárias. Mas não me atrevo a narrar detalhadamente o compasso dos eventos no tempo e no espaço, ou ficaria aqui escrevendo indefinidamente, num tempo sem conta e sem fim. Atravesso diversas eras da minha própria existência para chegar em muitos anos depois da verde Olivetti, num tempo em que o Atlântico passou a me desafiar com um canto semelhante ao das sereias, acenando com uma ponte encantada que me ajudaria a alcançar ao mesmo tempo a menina da máquina datilográfica e uma velha senhora que povoava o branco novo de uma janela eletrônica que havia substituído o presente dado por meu pai. O oceano me inspirava e chamava, até que tomei coragem e o atravessei.
Quem me conhece sabe bem de todos os riscos que corri, os medos que enfrentei e, principalmente, do tamanho do sonho que me movia. Retornava para a terra de meus antepassados para reescrever minha própria história.
Pisei terra firme e estava com tudo pronto para iniciar minha empreitada mais ousada, quando o vento suave e doce do amor mudou o tom da melodia que eu ouvia. O canto da sereia fazia-me voltar os olhos mais uma vez para o oceano e para mais uma viagem. Assim, depois de diversas idas e vindas, diversos vôos sobre o Atlântico, lutas contra burocracias e outras coisas arcaicas, depois de retornar ao ninho por um tempo, depois de ser aceita em um novo ninho bem longe de casa, depois de muita água passar por baixo da ponte encantada, finalmente vim parar onde jamais planejei ou sonhei viver. Deixei para trás a maior conquista acadêmica que tinha sido capaz de fazer até então. Abria mão do sonho da menina da máquina pelo menos por um tempo. Tempo indefinido, insondável, imprevisível. Mas o caso é que a menina tinha sonhos que iam além das letrinhas pretas e vermelhas que sua datilografia revelava. Ela sonhava não com amores, não com um amor, mas com O Amor.
Em terra estranha, vida nova e tempos de dificuldades inimagináveis. Tempo de longa espera. Muitas esperas. Tempo de aprender sobre paciência, sobre tempo livre, sobre nada para fazer, sobre saudades, sobre pertencer a algum lugar, sobre pertencer a lugar algum…
Mas eis que chegou o tempo certo. Sim, pois há um tempo certo para todas as coisas! Eu havia deixado uma ponte encantada e intocada em Portugal que andava comigo, iluminando meus olhos e meu olhar sobre o mundo. Agora o encanto da Ponte transmutou-se e permitiu-me ousar vestir a roupa encantada da menina da máquina verde e sair para ir contar para os súditos de Sua Majestade que eu tinha um sonho, uma idéia, um plano, um projeto!
Hoje a menina da máquina é uma das mais recentes pesquisadoras de uma excelente universidade, dando seus primeiros passos na caminhada para seu PhD. A Olivetti verde ficou no Brasil, esperando fielmente meu retorno, mas enquanto isso me sinto satisfeita e presenteada, de fato abençoada ao usar os recursos que a Universidade proporciona, certa de que a menina escritora e a velha dos escritos estão agora mesmo sentadas aqui comigo contando essa história, cheias de orgulho e esperanças, e dançam ao som não do canto da sereia, mas de uma linda canção de amor. Amor que agora comporta quatro vidas partilhadas. Mas isso já não faz parte do passado, e sim do presente que me presenteia e do futuro que me acena animador. Histórias que guardo para próximos encontros.
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